Hostis e ξένος (Xenos) no Diário da Peste de Gonçalo M. Tavares: o homem estrangeiro de si mesmo
Resumo
A 23 de Março de 2020, início do confinamento em Portugal, no contexto da pandemia da COVID 19, Gonçalo M. Tavares inaugurava no Jornal Expresso um espaço de crónicas diárias a que chamara Diário da Peste. Bastou o mais pequeno elemento da natureza – um vírus – para que a Humanidade, convencida do seu inabalável gigantismo ciclópico, se recordasse de que é falível e insignificante, para que se deparasse com a fragilidade da sua condição, perdendo a presunção de que a “potência militar e tecnológica” a pudesse salvar. Perante a invisibilidade do perigo, mergulhámos numa cegueira coletiva: os valores éticos e os códigos sociais tornaram-se difusos e os cinco sentidos insuficientes para reconhecer o inimigo e preservar a(s) espécie(s). A ameaça paralisou-nos, obrigou-nos a esperar como se a espera fosse uma acção. O indivíduo desencontrou-se de si mesmo e vê-se agora privado das suas esferas públicas que comprometem, inevitavelmente, todas as suas outras dimensões ontológicas. O presente trabalho pretende desenvolver uma análise etimológico-semântica dos conceitos de hostis, xenos, bárbaro, reconhecendo de que forma Gonçalo M. Tavares potencia estas ambiguidades no jogo literário de cariz filosófico e sócio-político do Diário da Peste. Deter-nos-emos também na relação de concorrência do homem com a máquina e outras engrenagens tecnológicas, como se de duas espécies do mundo natural se tratasse: a supremacia de uma representa a ameaça sobre a outra. Consequentemente, iremos ainda relfectir sobre a usurpação dos espaços entre o homem, o animal e a máquina, uma hybris decorrente do desrespeito das fronteiras dos respectivos habitats, o que aprofunda o tema da hostilidade e hospitalidade. Afinal, quem são os estrangeiros, quem determina quem são os Outros, de onde vem a ameaça e quem somos nós: questões nodais e liminares para o nosso exercício.
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